sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Encontros no ônibus lotado

Por volta de sete e oito da manhã é horário marcado pra sair de casa. Multidões se tornam massas nas correrias loucas dessa pequena grande cidade, dona de um trânsito que recentemente descobriu que conseguia também ser caótico a exemplo de algumas (verdadeiras) grandes cidades por aí. Quem viveu em Porto Velho antes de mim riria como de uma piada ao falar de ruas engarrafadas e lotadas de pessoas que se esbarram, cheias de compromissos, mas vazias de relações trocadas.

Mas tudo bem: eu sou dessa nova geração e estou acostumado. Pego de manhã cedo aquele bom e velho ônibus lotado, gosto de sentar no fundo (sou abençoado em morar próximo ao ponto final, ou ponto de início, no meu caso, o que me permite a gloriosa graça de poder sentar), com minha mochila nas costas e vestindo o uniforme, vou de segunda a sábado pra escola.  Vejo pela porta traseira entrar todo tipo de gente, e é engraçado pensar na grandiosa variedade de encontros de pessoas variadas que vivem nessa mesma cidade.

Num ponto entra uma garotinha de cabelos lisos penteados, vestindo um uniforme da escola, sua mãe a beija e acena enquanto ela entra no ônibus, ela entra sonhando um futuro brilhante, mas por enquanto, só queria mesmo um bom assento pra poder ir sentada.

Outro ponto. Entra aquele moleque de olhos inchados, querendo mesmo era voltar pra cama, provavelmente passou a noite em claro, no computador, primeiro conversando, depois jogando e o resto em sites proibidos, clicando e respondendo em tudo que lhe perguntava que ele era maior de idade, ia pra mesma escola que eu, mas nem sei direito o seu nome.

Nessa altura da manhã, o ônibus já está quase lotado, aquelas senhoras conversadeiras já estão com o braço erguido em minha frente, sustentando seus corpos obesos, e a cada freada do motorista, só faltam enterrar o traseiro em minha cara. Desvio pra evitar este constrangimento, batendo o olho em um casal apaixonado que sentou ao meu lado, transformando o banco conjunto do fundo do ônibus num daqueles motéis intrigantes onde se transa com roupa e tudo, quero rir, mas seria constrangedor, então olho pro outro lado, nem sei o que mais me envergonha: a transa vestida a direita, ou o traseiro gordo a esquerda. Volto a olhar pra porta.

Outro ponto. Entra aquele rapaz que não terá o mesmo futuro que o meu: chinelo de dedo, bermudas rasgadas e camiseta regata, usa um boné de aba reta, que virou modinha em todas as classes no último ano, entra com uma caixinha tocando um funk em volume alto (nada contra, até curto um pouco, mas um funk naquela altura a essa hora da manhã não é lá muito agradável). No outro braço carrega várias caixinhas de chicletes, que vai oferecendo aos tios e tias, em troca de algum trocado.

Nesse momento alguém sempre pede a palavra, algumas vezes é algum pobre coitado, dizendo que não roubará nem nada, mas que queria uma ajuda, em qualquer quantia pra comprar sua cachaça, digo, pra poder voltar pra casa. Outras vezes é algum iluminado, que recebeu de Deus a Palavra e que se não prestássemos atenção seríamos condenado. Enfim, ambos os casos são bem engraçados.

Outro ponto. Entra aquele senhor que veste roupas sociais, chapéu e óculos escuros, fico imaginando como ele aguenta vestir-se assim no calor dessa cidade. Ele entra e vai disfarçadamente olhando as mocinhas que estão indo pro trabalho, pra faculdade e pra escola, encostando seu corpo em muitas delas - velhinho tarado. E eu com vontade de rir, apenas disfarço e olho pro lado, o casal continua conectado por seus lábios e língua, olho por cima deles, uma mocinha de cabelos cacheados, pele morena e óculos tenta ler um pesado livro entre os solavancos da rua esburacada, recebendo, vira e mexe, tapas trocados dos doces apaixonados. Ela é bonita do seu jeito, mas pelo visto deve ser tímida e inacessível, daquelas que vive pra estudar apenas.

Outro ponto. Entra aquela senhora que acabou de sair do mercado, carregando um número absurdo de sacolas. Demora a entrar, empurrando a massa de gente, o cobrador quase entra em desespero para fazê-la passar pela roleta, ela passa empurrando pra chegar aos assentos preferenciais, mas estão todos lotados. Olho para os adolescentes sentados um do lado do outro em um banco ao lado dela, trocando mensagens pelo celular, riem do que um envia ao outro - quanta futilidade! Minha vontade era levantar e pedir pra que eles cedessem lugar à senhora, antes que as sacolas terminassem de entortá-la, mas estava muito longe e seria tão constrangedor fazer isso. Outra senhora, pouca coisa mais jovem, se levanta. “Não havia necessidade”, eu penso, “se aqueles adolescentes idiotas fossem um pouco mais educado.” Mas eu também não fiz nada, apenas julgo e fico calado.

Na verdade nem daria tempo pra revolta: meu ponto está chegando, me levanto e enfrento a grandiosa epopeia de cruzar um ônibus lotado, trocando odores com diversas pessoas, empurro, peço licença, passo por baixo de braços, tropeço e peço desculpas, puxo a cordinha (que está quebrada e só se encontra na frente), o sinal apita e o ônibus vai parando, já estou quase na frente, mas um senhor obeso não me deixa passar, o motorista se irrita e vai saindo, eu grito que ainda vou descer e a massa de pessoas grita junto, condoída como se também sentisse minha frustração. Ele esbraveja e para de novo, abre a porta, eu murmuro um “obrigado”, mas nem olho pra ele, duvido que ele tenha olhado pra mim também.


Desço, então, do ônibus. Olho de volta enquanto ele vai saindo, no fundo a mocinha de óculos parou de ler seu livro e olha pela janela, por um momento pensei que ela olhava pra mim, então sorri, mas ela não respondeu. Não era pra mim que ela olhava, era pro nada. Foi então que percebi, mais uma vez, que na correria de um ônibus lotado, em uma cidade lotada, várias pessoas se esbarram, várias cenas se entrecruzam e encontros inusitados acontecem, porém a maioria das pessoas está apenas olhando para o seu próprio nada, inclusive eu...
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Porto Velho está crescendo, eu sei. Talvez não o suficiente para tornar-se uma grande cidade, mas já vemos alguns sintomas dessa pós-modernidade "metropólica" que começa a infectar a nossa cidade. Basta sair de casa de carro, a pé, de bicicleta e de ônibus para sentir essa transformação.
A crônica de hoje se passa num ônibus, talvez você, corajoso leitor, já tenha passado por esse mesmo ônibus, talvez você seja até algum desses personagens que passam pela roleta, quem sabe você não é aquela moça sonhadora sentada no banco de trás, ou aquele impaciente que não sabe se se segura ou se olha no relógio pra confirmar que está atrasado.
Peguei e continuo pegando muito ônibus nessa pequena grande cidade de Porto Velho e já encontrei várias pessoas e algumas até me encontraram, mas nessa correria que inventamos, quem realmente encontramos nessa estrada?

2 comentários:

  1. Não sei responder a sua pergunta. Mas acredito que mesmo nesses pequenos grandes momentos em que nos conectamos de diversas maneiras a essas pessoas, estamos cumprindo um profundo papel naquilo que se chama sociedade. Talvez seu olhar não atinja tudo e talvez você não faça sempre a diferença. Mas as oportunidades estão ai e cada vez que nos conectamos, cada vez que somos levados a cruzar dentro de um onibus com a vida das outras pessoas, então temos a oportunidade de fazer a diferença. Um olhar sincero de felicidade, Um pensamento positivo na direção de um irmão, Um gesto de gentileza, O esquecimento do constrangimento em prol de um conselho amigo... Quantas oportunidades nós temos? Obrigado por me fazer pensar amigo. Quem sabe o que mais iremos inventar nessa correria... Mas espero que tenhamos a capacidade de, não só encontrar pessoas, mas realmente fazer alguma diferença na vida delas... =D

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    1. Encontros acontecem o tempo todo na nossa vida, na maioria das vezes apenas não percebemos a importância desses encontros. Quantas vezes nesse ônibus dessa crônica não nos comportamos com estes personagens, tão presos a si mesmo que se tornam incapazes de perceber uns aos outros. O narrador dessa crônica também não está longe: ele observa e percebe, mas ele também não realiza o encontro, ele também está isolado. Como tu dissestes, amigo, o encontro exige que se faça algo pra fazer a diferença, o encontro exige contato, diálogo, e, na correria da nossa vida, acabamos desperdiçando muitos encontros que poderiam ser importantes.

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