sábado, 11 de outubro de 2014

Os apartamentos de Seu Álvaro

Na esquina da Rua X com a Rua Y, logo ao lado da padaria do Seu Zé, há uma pequena vila de apartamentos que pertence ao Seu Álvaro, um velhinho rabugento que anda pra cima e pra baixo numa bicicleta velha que eu nunca entendi porque nunca trocou por um carro se ele tem tantos apartamentos alugados por aí.

Lá nos apartamentos do Seu Álvaro moram todo o tipo de pessoas que desenvolvem uma relação engraçada: moram praticamente na mesma casa, divididas em pequenas moradias apenas por paredes grudadas, mas separadas pelo hábito de não se comunicar. Lá todo mundo só fala o básico com cada um e ainda assim dá conta de dar conta da vida de todo mundo.

No 01 mora um rapaz solteiro, tem seus quarenta e tantos anos de idade. Todo dia ele sai cedo, vestindo um uniforme amarrotado, geralmente com a barba mal feita e uns óculos tortos. Ele trabalha numa loja de eletrodomésticos no centro e nunca fica em casa, seu apartamento deve ser um lixo, pois as janelas só são abertas uma vez por semana. Todos têm pena do pobre, pois deve ser um homem muito sozinho, pois nunca recebe ninguém e nunca se ouviu falar dele namorando, no entanto nenhum vizinho nunca o fez uma visita, nem nos domingos, quando ele passa o dia inteiro dormindo.

No 02 mora um casal bem jovem, ela está grávida, mas tadinha: seu corpo é tão pequeno e tão jovem que anda por aí arrastando aquela barriga que só falta a dobrar ao meio. Todos dizem que os dois brigaram com os pais pra morarem juntos, porque ninguém nunca viu os pais de nenhum dos dois vindo os visitar. Todo dia os dois saem de moto pro trabalho ou pra faculdade, ninguém sabe o que eles fazem, mas uma coisa eles sabem: essa criança não terá futuro, pois com os pais provavelmente não terão como sustenta-la e, como os dois são muito jovens, não saberão educa-la, pois uma criança não consegue criar outra.

No 03 mora uma senhora de cinquenta anos que nunca se casou e provavelmente nem sabe o que é ter afeto por alguém que não seja um pequeno cachorro que divide o apartamento com ela. As normas da casa não permitiam animais ali, mas quando se mudou para lá, a senhora fez um escândalo, pois o pequeno animal era a única família que tinha. Pobre mulher solitária – era o que todos diziam. Seu Álvaro, comovido deixou que ela levasse o cão. E até que o animal é comportado, silencioso, calmo e o mais importante: quieto; faz bem menos algazarra que as crianças gêmeas do 05.

E no 04 mora ela: Beatriz, a mais bela e radical garota que há por ali. Independente e sensual, sai de manhã vestindo roupas finas, carregando uma maleta preta, um carro de vidros escuros todos os dias a espera, a leva e a traz de volta no fim do dia. Há quem diga que ela é uma mulher de negócios, mas a maioria a define como uma mulher da vida. Sobre ela as opiniões se dividem: os homens estão interessados em suas pernas, as mulheres em suas roupas. Enfim, de negócio ou da vida, Beatriz ainda é a mais bela.

E finalmente o 06, onde não há ninguém, pois se houvesse alguém, este seria visto, este seria ouvido, no entanto de lá só se ouvem sussurros durante a noite e solidão durante o dia, de um ninguém que nunca é visto e nunca recebe visitas, um ninguém frio e misterioso que ali reside.

O engraçado deste prédio é que todos se veem todos os dias, todos se encontram e dão “Bom dia”, desde as irmãs costureiras do 07 ao velhinho tarado do 12, no entanto pouco se conversa, pouco se entende e muito se fala. Cada apartamento parece saber tudo do outro, pensando que  devido às paredes serem grudadas, grudariam também as vidas.

No apartamento de Seu Álvaro todos dão conta da vida de todos, mas ninguém conhece ao fundo cada um... Mas ninguém não era o morador do 06? Será que ninguém nunca se importou de verdade com a história de cada um enquanto todos julgavam e imaginavam cada um? O que aconteceria se o rapaz do 01 saísse um dia com Beatriz do 04? E se as crianças do 05 passassem um dia brincando com o cachorro e a dona no 03? Quantas histórias as irmãs do 07 não terão para contar?

Mas não... Cada um vive sua vida até que se mude daquela espelunca. Pois tudo o que eles mais querem é se livrar do aluguel e ter sua casa própria, onde, livres das paredes grudadas, poderão viver sua vida, sem os vizinhos estranhos a quem são obrigados a desejarem “Bom dia”.

--
Bom, sem pós escritos longos hoje... Quem é ou tem esse tipo de vizinhos sabe muito bem como é saber e querer cuidar da vida um do outro, não é verdade? Um verdadeiro show de "fraternidade", afinal a grama do vizinho é mais verde e os nossos palpites na vida dos outros sempre é mais útil do que nas nossas próprias...

domingo, 5 de outubro de 2014

O formigueiro

Hoje nós brasileiros encararemos nosso maior aliado e ao mesmo tempo maior inimigo: as urnas. Hoje é o dia em que nós somos convidados (leia-se convocados, obrigados, etc.) a comparecermos às nossas Zonas Eleitorais para ali exercer nosso papel de cidadãos deste Estado democrático, apertando uma série de números que culminará na eleição de nossos futuros governadores, presidentes, deputados estaduais e federais e senadores.

Um dia importante por sua graça e periculosidade. Um voto errado faz toda a diferença, pois fazemos parte de um grande sistema que envolve do mais pobre ao mais rico, do favelado ao morador de um condomínio de luxo, enfim, de todos nós, brasileiros e brasileiras.

O que eu queria realmente para hoje é aquele nacionalismo que presenciamos na Copa do Mundo, creio que ele combinaria mais com o dia de hoje do que com a derrota catastrófica da seleção brasileira para a seleção alemã, até porque ainda busco algo de realmente importante no caráter prático social que a seleção tenha feito por nós. Queria que nessas eleições, julgássemos candidatos como julgamos técnicos e jogadores de futebol, que possamos analisar sua performance em outras partidas, suas condições físicas e psicológicas para desempenhar esse papel importante: defender a camisa verde e amarela dos Poderes Executivo e Legislativo.

Se você sabe que seu "jogador" já perdeu várias partidas, usa algum "medicamento" ilegal pra estar lá e não consegue se encaixar com o padrão de qualidade da seleção, então, não o coloque lá dentro. Não cometa o erro do Felipão, porque pior que perder para a Alemanha, será perder mais quatro anos da nossa política nacional.

O poema de hoje se chama "O formigueiro". Quem me acompanha no facebook já deve conhecê-lo, pois o divulguei a pouco tempo lá, no entanto eu creio que ele combina perfeitamente com o dia de hoje. Então, com vocês a minha descrição de uma sociedade muito organizada: a comunidade das formigas!

O Formigueiro

A criança criadora curiosa
Se levanta e assenta pra avaliar
A válida imagem
Da pequena sociedade singular.

Formigas formando seus pares,
Formigas que formam um lar,
Formigas de vários lugares
Formando em seu laborar.

Rodeiam o Formigueiro-Estado,
Rodeadas de pompa salutar,
As formigas-soldados armados,
Preparadas pra morrer ou matar.

Dormem sem glórias ou honras,
Sonham com formigas em suas camas...
Não sabem ao certo a que horas
Serão esmagados por honras e famas.

Exploradoras saem trilhando,
Se achando as formigas da história,
Expandindo seus territórios
Tecendo novas trilhas e glórias.

Desenvolvem métodos e teses,
Tecendo assim novas necessidades,
Tecnologias, técnicas e antíteses,
Tão necessárias quanto inúteis na verdade.

Formigas operárias saem de madrugada,
Carregando seus pesos pela sociedade,
Construindo túneis, móveis e montes de nada,
Nem se lembram se dormem cedo ou tarde.

Formigas buscando comidas,
Formigas parecendo escravas:
Trabalham pra salvar suas vidas
Ou pra engordar a rainha e suas larvas?

 Formigas de sábado à noite,
Açucaradas e embriagadas:
Esquecem operários e açoites
Esquecem-se se são rainhas ou soldados.

Uma ou outra cria coragem:
Agride o destino com força,
Para que as outras ao menos tentem...
Mas formiga boa é formiga burra...

Quão louca é esta formiga:
Formiga nasceu para a trilha!
Pra que arrumar uma briga
Se todos são da mesma família?

E assim prossegue o formigueiro-Estado.
A rainha o observa do alto,
Cansada desse seu árduo fardo
De engordar-se do sacrifício de tantos.

Formigas morrem dia-a-dia,
As outras quase nem percebem,
Pois enquanto uma morria
O sistema a repunha imediatamente.

Porque o formigueiro não para.
O formigueiro persiste.
E a criança criadora curiosa observa
Essa sociedade que insiste.

Curiosa observa, se impressiona,
Observando por um longo segundo...
E ali, observando atenta, exclama
Que as formigas já dominaram o mundo.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Ao centenário de Porto Velho: "Sobre os amantes ao Pôr do sol"

Porto Velho completa hoje o seu centenário. Cem anos de uma história que muitas vezes segue esquecida.

Centenário... Cem ter nada... Sem ter nada... Sem um povo que de fato a ame, a conheça e valorize aquilo de bom que ela tem a oferecer, sem políticos verdadeiramente comprometidos com ela e tantas outras coisas que me desagradam citar.
Mas hoje não é um dia pra pensamentos negativos, pelo contrário: é um dia de esperanças. São cem anos de histórias, seja ela boa ou ruim, cem anos de um município pelo qual sou completamente apaixonado.
Falo isso com sinceridade: já tive a oportunidade de viajar para muitos lugares e conhecer outras pessoas e ambientes, mas confesso que minhas raízes serão sempre mais fortes. Tomei água do Madeira desde o dia em que nasci, se a lenda for verdadeira, aí sim que nunca terei vontade de deixar completamente esta terra banhada pelo soberano rio.
E é por isso que hoje resolvi postar esta poesia, que eu escrevi nos tempos de escola em uma aula de história regional, confesso que que foi difícil encontra-la perdida entre várias lembranças que sinceramente nem me recordava da existência, mas a nossa "velhinha" merecia e eu gostei desse texto na época e espero que vocês também gostem.

Parabéns, Porto Velho! Para os próximos 100 anos te desejo mais pessoas verdadeiramente apaixonadas e comprometidas com essa terra, suas belezas, suas gentes e sua cultura (que existe e é a beleza da mistura de tantas outras)!


Sobre os amantes ao Pôr do Sol

Antigo e sinuoso ele estava
e enquanto ela nascia, observava.
Sereno, amante e silencioso, cobiçava.
E ela, ao crescer, se insinuava.

Ele, vomitando suas riquezas, a cortejava.
Ela, cobrindo-se desse ouro, se alegrava.
Vinham invejosos e saqueavam
e deste ouro presenteado quase nada deixaram.

Ela, crescendo, o abraçava.
Ele, encantado, admirava.
E, mesmo quando seus ouros não mais encantavam,
fez questão de carregar o luxo branco que dela levavam.

Ele, violento, as vidas dos outros amantes ceifava.
Ela, mãe que era, dos sobreviventes tratava.
E ainda nessas tormentas, riquezas ambos juntavam,
mas diziam serem loucos os que ao encontro deles migravam.

Ela, enfeitando-se de aço, novo amante aceitava.
Ele, silencioso, ainda ao seu redor caminhava.
E assim os tesouros que antes a ele confiavam,
ao novo amante, o fumegante, agora entregavam.

Ele, insistentemente a acariciava.
Ela, sorridente e mudada, com seu corpo o entrelaçava.
Os aços no corpo dela, agora se enferrujavam
e os amantes fumegantes, corroídos, no esquecimento se apagavam.

Ela, mais velha, porém jovem, ainda o abraçava.
Ele, em suas correntes, levemente a devorava.
Eles ainda vão juntos ao horizonte, onde os céus se alaranjavam,
abraçados num abraço eterno sob as luzes que desiluminavam.

Ele, o Madeira, correndo enquanto o sol poente o dourava.
Ela, a Porto Velho, sob as cores do sol que em seu corpo banhava.
Eles, amantes eternos, que a tantos sóis se banharam,

Esperam, no fim do dia, o amanhã secreto que até hoje aguardam.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Julgados

Dando corpo àquele velho ditado popular, "quem é vivo sempre aparece", aqui estou eu novamente lançando mais uma gama de palavras às redes através desse blog. Confesso que nas semanas passadas, algumas dificuldades e problemas pessoais me tiraram um pouco a vontade de escrever, mas eis que volto, depois das tempestades, para aproveitar A brisa leve e a maresia da minha mente para trazer uma poesia para aqueles que se aventuram a acompanhar as minhas "viagens mentais".

Recentemente percebi um aumento da discussão quanto à homofobia nas redes sociais, motivadas pelas polêmicas manifestações de determinado candidato à Presidência da República. Por esse motivo, escolhi marcar meu retorno com este texto que escrevi há algum tempo. O tema geral é a mudança dos tempos, as novidades que a pós-modernidade nos traz nas mais diversas esferas nas famílias, nas relações, nas instituições, na própria fé e outros (são tantas que talvez nem caberiam neste espaço).


Eu venho observando nas redes sociais (virtuais e reais) as mais diversas reações em relação a essas mudanças, da aceitação radical à negação radical, de forma branda e violenta, são diferentes formas de manifestar opiniões.

Considero exageros sempre maléficos, como ditava o filósofo grego Aristóteles, o excesso ou a deficiência geram vícios, não virtudes, creio que pode ser aplicada aqui: não quero me posicionar aqui como pró ou contra aborto, casamento homossexual, eutanásia, cultura de massa e tantas outras discussões que afloram com essas novas gerações. Pelo contrário: quero achar o balanço, a estabilidade, através da compreensão de que os tempos mudaram, os tempos avançam e não somos capazes de segurar este fluxo, resta-nos apenas refletir quais as maneiras menos danosas para viver estas mudanças.

Enfim, já enrolei demais e, se não me segurar, vou acabar esquecendo de colar aqui a poesia. Espero que gostem.

Julgados

Onde estão os versos sinceros?
Onde estão as cartas de amor?
Diga a eles que eu os espero
Num jardim escasso de flor.

Diga aos versos que as palavras mudaram,
Avisem ao poeta que o amor saiu de moda,
Peça que esqueçam o que compuseram,
Pois a vida girou qual velha roda.

Manda dizer que nasceu morango na jabuticabeira
E que as ondas do mar não mais chocam,
Avisa que esta não será a primeira,
Mas a última das damas que choram.

Pergunte à dama chorosa porque ela chora,
Se é pelo cravou ou pela rosa.
Se ela te responde, tens glória,
Mas o que dirás, então, à chorosa?

Dirás que rosa é rosa e cravo é cravo? 
Que morango não dá em jabuticabeira?
Acaso te esqueces que um dia foste escravo
Daquela velha e má conselheira?

Se está errado, diga em que
E me prove que estou enganado.
Tenho culpa do sofrimento que vês
Antes do trânsito em julgado?

Como condenar um condenado?
Avise ao poeta: as rimas mudaram.
Quem sabe um verso desencantado
Não cure a incerteza dos que a julgaram?

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Papo com uma estrela

Nosso planeta é apenas um grão de poeira lançado num mar infinito que nossa racionalidade chamou de universo, resultado de uma explosão que, segundo os físicos, aconteceu no "t=0", ou ainda, segundo os religiosos, aconteceu "No princípio", sem contar outras diversas variações dessa mesma história.
Mas pule por favor esta parte de discutir sobre o início, pois creio que ele permanecerá sempre obscuro, de certa forma, para nós que vivemos no presente, e pousemos nosso olhar neste grão de poeira do qual falamos agora: entre a infinidade de galáxias, uma - a Via Láctea; dentro dessa uma galáxia, um planeta - a Terra - misteriosamente bem posicionado o suficiente para gerar a vida; dentro desse planeta, sete bilhões de animais "mais desenvolvidos" - a raça humana - com o incrível dom chamado de razão; dentre estes sete bilhões de seres humanos, um homem - eu - sentado em frente a um computador, escrevendo um texto sobre a própria existência...
Quis fazer esta breve viagem do universo até mim para tentar instigar em você, corajoso leitor, a mesma inquietação que tive ao escrever a poesia de hoje: como podemos ser assim tão importantes em nossa individualidade se considerarmos nossa pequenez diante de tudo o que existe? Somos apenas poeira das estrelas, mas ainda assim somos importantes de alguma forma, caso contrário, nem sequer faria sentido a existência... Mas, então: Por que existimos? Qual o nosso papel no universo? Quem somos nós?
Não sei. Milhares de pensadores morreram tentando responder essas questões e nem todos conseguiram, e os que conseguiram não são aceitos como totalmente corretos... Por enquanto me contento apenas com esta frase: "Somos o que somos: poeira das estrelas, escolhidos pelo Sol para possuir quase tudo, ou seja: quase nada".

Papo com uma estrela

Boa noite, pequena estrela!
Quão engraçada tu és:
Brilhas sem que alguém te acenda
E, às vezes, ninguém te vê.

Ninguém te pede: “Vem”,
Ninguém te ordena: “Vai”
Brilhas às vezes a ninguém,
Mas insistes em teu “vem e vai”.

Brilhas guiando nos mares
Os navios sem seus sonares
E, dos poetas perdidos em ilusão,
Volta e meia tu és inspiração.

Daqui onde estou
Te meço com dois dedos;
Daí onde estás
Eu nem sequer existo.

Somos o que somos:
Poeira das estrelas,
Escolhidas pelo Sol pra possui quase tudo,
Ou seja, quase nada.

Somos o que somos:
Reflexos das estrelas...
Brilhamos, caímos e apagamos,
Perdidos nesse acende e apaga.

Somos o que somos:
Nós somos estrelas
Marrons, super-novas e anãs-vermelhas...
Somos e não somos estrelas.

domingo, 14 de setembro de 2014

Uma missa de domingo

O sino da catedral soou às seis da manhã chamando desesperadamente todos os fiéis para a missa. Pessoas engomadas e enfeitadas começaram a sair de suas casas, chegando de carro, estacionando na praça, puxando e empurrando seus filhos. Alguns já haviam chegado mais cedo, estavam ajoelhadas nos genuflexórios dos bancos, olhando para dentro de si, rezando pelos seus, pelo mundo ou por nada. As crianças sonolentas sentavam nos bancos, escoradas nos pais, sem entender metade do que estavam fazendo ali, torcendo pra que acabasse logo pra poder passar o resto do dia no computador ou no vídeo game, outras apreciavam a infinidades de pinturas que rodeava paredes, vitrais, abóbodas e até o próprio piso: que obra arquitetônica digna do rei que ali reside!

O sino toca pela última vez, anunciando a todos que a missa iria começar: cruz, velas, incenso, coroinhas, leitores, ministros e padre, mais ou menos nessa formação, caminharam solenemente até o altar iniciando a tão esperada celebração.

Estava mais ou menos na metade quando eu cheguei. Estava sujo e fedido, com minhas vestes rasgadas e os pés rachados de tanto caminhar sem rumo pelas ruas de tantos lugares que nem sequer lembro direito, o corpo cheio de feridas de quedas e de chutes que me davam enquanto eu dormia, quando me xingavam de vagabundo e mandavam trabalhar pra conseguir comida. Enfim, não estava tão bonito quanto todos que estavam ali dentro, e por este motivo me sentei na porta e respirei fundo, esperei a celebração acabar.

- Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe! – disse o padre, e o povo evaporou pelas portas, conversando alto ou ignorando uns aos outros, de um modo que eu não compreendi. Estendi a mão, não pedindo dinheiro, mas pedindo atenção (às vezes eu esqueço que sou invisível para muitos), se bem que dessa vez alguns me olharam e jogaram moedas na minha direção, recolhi, agradecendo com os olhos e eles foram embora.

Continuei sentado, respirei fundo novamente, ouvi passos – minha vista não estava tão boa naquele dia – olhei para dentro da igreja, o padre vinha conversando com duas senhoras. Falavam de coisas bonitas que iriam acontecer no final de semana seguinte: festa do padroeiro, entradas solenes e a presença do bispo. Eu sorri pra mim mesmo: com certeza estes me dariam atenção, ergui-me sobre os joelhos e estendi as mãos.

As senhoras deram dois passos para trás do padre, assustadas com minha audácia, enquanto eu de mãos estendidas, não conseguia falar nada. O padre, um senhor alto, usando roupas sociais de alguma marca que eu nunca havia vestido e com certeza não vestiria (é muito difícil achar esse tipo de coisa no lixo), sacou do bolso uma carteira e me deu uma nota: dez reais. E sorrindo despediu-se desejando que Deus me abençoasse a que respondi “Amém”.

Um senhor veio atrás fechando as portas e anunciando que eu não poderia ficar ali, que o horário tinha avançado, mas que podia vir no dia que distribuem o sopão. Olhei nos olhos dele, ele desviou, trancou as pesadas portas e seguiu seu rumo, me deixando ali, parado numa praça cheia de gente e vazia de sensibilidade.

Sentei-me no chão, no centro da praça e comecei a chorar chamando por minha mãe. Sim, sei que estou velho demais pra isso, mas quem não gosta de chamar a sua mãe num momento como estes?

E aí ela veio: vestida em trapos, com um lenço cobrindo a cabeça, me abraçou e me ergueu do chão, tirando a poeira da minha barba mal feita e com um sorriso, olhando nos meus olhos, disse:


- Meu filho, meu Jesus, não fique assim! Quem sabe na próxima eles te reconhecem?
--

Alguém foi à missa ou ao culto ou a outro rito religioso esse final de semana? Se sim, deixo essa crônica, hoje mais voltada aos colegas que, assim como eu, são cristãos, mas que deve ser lida e interpretada por todos.
O que realmente move a "tal" da nossa fé? Em quem acreditamos e será que vivenciamos de verdade o que acreditamos?
Este homem, chamado Cristo, deixou apenas um mandamento na sua "Lei": amai-vos. Simples e singelo, porém desafiador.
Espero que tenham gostado dessa crônica, e mantenhamos os olhos abertos, para que em nossas orações e celebrações não deixemos de fora aquele que deveria ser o centro...

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Ser tudo e nada ser

Então, queridos leitores, ontem eu dormi com 21 anos e hoje eu acordei com 22. E assim mais um ciclo se completa...
Não sou muito fã da contagem dos anos. Sinceramente nem acredito muito na possibilidade de contar realmente o tempo e acho que essa é apenas uma tentativa (um tanto quanto frustrada) do ser humano de tentar controlar seus predadores naturais: o tempo e a morte.
No entanto, eu gosto de aniversário, gosto de gravar datas comemorativas, porque é algo consagrado pela nossa cultura e revela a importância. A data de hoje, por exemplo, mais que lembrar o meu nascimento, lembra a caminhada que passei para chegar até aqui e lembra que ainda tenho muito mais caminho pela frente...
Enfim, guardemos a nostalgia para mim mesmo e prossigamos com o poema.
Esse talvez seja um dos mais antigos poemas que eu tenho guardado. Eu o usei no meu finado (e vergonhoso) Fotolog, depois ele passou a ser a minha descrição no também finado Orkut, de alguma forma eu acho que ele diz um pouco sobre mim (lembram de quando eu falei que me identificava com a contradição). É um texto breve, espero que gostem e feliz aniversário pra mim!

Ser tudo e nada ser

Sou do vento
A brisa e o furacão.
Do tormento
Sou o pranto e a canção.

Sou a vida,
Sou a morte.
Sou o azar
E sou a sorte.

Sou tudo que amam.
Sou tudo que odeiam.
Mas agradá-los não almejo.

Enfim...
Sou tudo.
No fim: nada!


quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Sobre os segredos dos poemas

Uma vez presenteei uma namorada com uma poesia minha. Era um texto bonito que falava sobre o amor e a necessidade da entrega e, apaixonado como estava, fiz questão de lhe dar o manuscrito, com suas rasuras e tudo mais. No entanto, ao dar este maravilhoso presente, eu esqueci de um pequeno grande detalhe: eu tenho o hábito de datar os meus textos.

Resumindo a história: a data que estava na poesia era muito anterior ao nosso relacionamento. Com todo respeito às nossas queridas leitoras, mas minhas experiências com relacionamentos ensinaram que às vezes uma vírgula vira uma frase na cabeça de uma mulher ciumenta. Foram dias e semanas me perguntando para quem eu tinha escrito aquela poesia e eu, sem graça e sem respostas, falava que não lembrava e que talvez nem fosse pra ninguém, e tentei dar uma explicação bonita de como aquele texto podia ter outros significados que não fossem românticos (ou sexuais).


Mas por que estou contando essa história? Porque logo em seguida a esses fatos escrevi o texto que posto hoje. 

Numa tentativa desesperada de me explicar, escrevi um poema sobre os versos que não conseguem ser decifrados e que só fazem sentido na cabeça de quem os escreve. Espero sinceramente que gostem.

Sobre os segredos dos poemas

Pobre verso incompreendido,
Pobre rascunho rasurado,
Pobre rabisco pós-escrito:
Jamais serão interpretados.

Quem saberá a verdade
Que o poeta ocultou?
Qual será a realidade
Que atrás do verso orquestrou?

Há quem diga que é amor
Os versos que ele versou,
Para outros são versos de dor...
No entanto só o sabe o autor.

Só ele entenderá as risadas,
Se eram de gozo ou rancor...
Se foram irônicas as toadas
Que falavam sobre o condor.

Eis teu sorriso versado:
Ali onde o poeta riscou.
No entanto, só ao poeta é sabido

Se no verso foi amigo ou amou.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O balanço

Quando eu era criança havia um balanço numa árvore em frente à minha casa. Quase todos os dias eu e meus primos nos estapeávamos pra ver quem ficava no balanço... E isso era muito divertido. Eu era o mais alto, às vezes ganhava, mas meu irmão era o mais esperto, às vezes me tapeava e ficava no balanço no meu lugar. Então nos estapeávamos de novo, até que um de nós subisse ao trono glorioso do balanço.

Mas o que havia de especial no balanço? Bem, éramos sete crianças que tínhamos uma obsessão por aquele balanço e para nós ele parecia especial. Eu, por exemplo, amava balançar mais e mais alto, fingia que conseguia alcançar as nuvens e trazia pedaços delas para meus primos, contando aquela velha história de que as nuvens eram algodão-doce, todos saboreávamos e nos empanturrávamos dessa deliciosa receita imaginária, até que alguém me puxasse pra baixo e outro subisse no balanço. Subia então uma de minhas primas, que se balançava e dizia que era uma fada, que ia voar bem alto e fazer encantos pra deixar todo mundo feliz. E todos nós ríamos, porque o feitiço havia funcionado ao menos com a gente, porque pra nós parecia tão simples ser feliz.

No final da tarde, quando a gente chegava da escola e corria pra chegar no balanço,  muitas vezes nos frustrávamos, pois era o horário em que geralmente a minha tia encontrava o namorado e o balanço era dos dois, ela sentava no colo dele e os dois balançavam devagarzinho, trocando beijos e carinhos, promessas e juras de amor, queriam casar logo, ter filhos e uma casinha, começando pequena e depois ampliando. Nós ficávamos olhando de longe e rindo daquilo tudo, pois beijos pareciam tão nojentos e romances pareciam tão engraçados.

Com o balanço ocupado, íamos tomar banho, depois voltávamos: o balanço estava vazio, então corríamos pra árvore. Quem não subia no balanço, subia pelos galhos (todos éramos craques nessa habilidade). No balanço éramos reis, rainhas, príncipes, princesas, super-heróis e monstros, piratas e desbravadores, e éramos tudo e, acima de tudo, éramos simplesmente felizes.

Ficávamos até altas horas da noite, de vez em quando passava um carro na rua, os vizinhos quando nos viam nos cumprimentavam, de alguns até zombávamos, de outros tínhamos medo, e nos escondíamos quando passavam, mas não lembro de nenhum deles nos fazendo nada de errado, nada de mal.

Mas muito tempo passou, não há mais árvore, não há mais balanço. Meus primos cresceram, alguns casaram, outros estão trabalhando, uns foram para outras cidades e eu fiquei por aqui, vendo o verde virando concreto e a liberdade virando violência numa cidade que foi crescendo e cortando seus balanços.

Tomo o mesmo café todo dia, vou ao mesmo prédio onde trabalho, não tenho balanço e nem árvore no meu escritório, só uma cadeira com rodinhas e uma mesa com papéis e mais papéis empilhados.

Vira e mexe eu olho pela janela e olho uma casinha que tem ao lado, mísera construção diante de tantos prédios. Tem uma bela árvore na frente dela, mas nenhum balanço: que desperdício! Olhando aquela casa eu fico lembrando da infância, de mim, de meus primos e de como a vida era simples...


“Quem me dera ter um balanço numa árvore”, penso eu em meio aos papéis do escritório e imerso nos problemas do trabalho e de casa, “o balanço tinha uma magia diferente que fazia a vida, que é assim tão complicada, ser tão mais simples”.
--

No início dessa semana, quis com essa crônica relembrar a simplicidade que era nossa vida nos nossos dias de infância.
Ainda lembro com certa clareza (e um pouco de fantasia) o modo simples que a vida era nos nossos olhos infantis e sonhadores, não haviam problemas, não haviam metas ou objetivos, apenas sorrisos e as lágrimas eram de incompreensão ou de joelhos ralados, que também deixam suas cicatrizes. Crescemos, somos adultos e temos nossas responsabilidades, as cicatrizes de antes levavam um tempo até sararem, as de hoje também, embora pareçam incuráveis.
Talvez seja essa incrível arte de ver a vida com os olhos de uma criança um segredo para uma vida um pouco menos dolorosa: o balanço é metafórico, ele não tem poderes mágicos, a magia acontecia nos olhos e sorriso daquelas crianças que haviam compreendido que podem ser simplesmente felizes... Como relembrar essa habilidade de ser feliz?

sábado, 6 de setembro de 2014

Antes tudo era Verbo

Recentemente tive algumas discussões muito interessantes com uma amiga, depois com alguns colegas da faculdade sobre o tema: "Quem é Deus?" e dentro desse descobrir quem é Deus, qual é o verdadeiro papel das religiões nesse caminhar.

Bem, aos leitores que não sabem, eu sou católico, mas não pensem que eu sou do tipo mente fechada, na verdade, minha visão sobre religião é bem ampla e aberta ao novo, o que algumas vezes acarreta crises existenciais muito interessantes.

Fora o papo religioso, acredito numa verdade universal, uma inteligência (ou essência se preferirem), que se revela continuamente à humanidade, que chamamos de Deus, Alá, Shiva, como preferir.

O poema de hoje fala disso e da busca de Deus dentro de onde ele pode ser encontrado: em tudo e, principalmente, dentro de cada um de nós.

Antes tudo era Verbo

Tudo um dia foi verbo,
Antes que tudo fosse carne,
Antes que a carne fosse vida.
Creio que o verbo era verso,
Somos filhos da poesia.

Somos herdeiros da poesia,
Embora tentemos ser o inverso,
Esquecendo a beleza do versar esta lida,
Não deixando que em nós o verso se encarne,
Esquecemos que grande parte de nós é verbo.

Esquecemos os textos e os vendemos num sebo,
Acredito que falavam de algo que nos irmane,
Que escrevemos achando encontrar a saída,
Mas disseram ser poemas baratos e do avesso,
Que acharíamos bonitos, mas ninguém leria.

Antes da carne e da poesia,
Antes dos filhos tornarem-se o inverso,
Antes que a vida não tivesse saída,
Antes que o tudo como vida se encarne,

Tudo era, éramos, é e somos filhos e parte do verbo.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Encontros no ônibus lotado

Por volta de sete e oito da manhã é horário marcado pra sair de casa. Multidões se tornam massas nas correrias loucas dessa pequena grande cidade, dona de um trânsito que recentemente descobriu que conseguia também ser caótico a exemplo de algumas (verdadeiras) grandes cidades por aí. Quem viveu em Porto Velho antes de mim riria como de uma piada ao falar de ruas engarrafadas e lotadas de pessoas que se esbarram, cheias de compromissos, mas vazias de relações trocadas.

Mas tudo bem: eu sou dessa nova geração e estou acostumado. Pego de manhã cedo aquele bom e velho ônibus lotado, gosto de sentar no fundo (sou abençoado em morar próximo ao ponto final, ou ponto de início, no meu caso, o que me permite a gloriosa graça de poder sentar), com minha mochila nas costas e vestindo o uniforme, vou de segunda a sábado pra escola.  Vejo pela porta traseira entrar todo tipo de gente, e é engraçado pensar na grandiosa variedade de encontros de pessoas variadas que vivem nessa mesma cidade.

Num ponto entra uma garotinha de cabelos lisos penteados, vestindo um uniforme da escola, sua mãe a beija e acena enquanto ela entra no ônibus, ela entra sonhando um futuro brilhante, mas por enquanto, só queria mesmo um bom assento pra poder ir sentada.

Outro ponto. Entra aquele moleque de olhos inchados, querendo mesmo era voltar pra cama, provavelmente passou a noite em claro, no computador, primeiro conversando, depois jogando e o resto em sites proibidos, clicando e respondendo em tudo que lhe perguntava que ele era maior de idade, ia pra mesma escola que eu, mas nem sei direito o seu nome.

Nessa altura da manhã, o ônibus já está quase lotado, aquelas senhoras conversadeiras já estão com o braço erguido em minha frente, sustentando seus corpos obesos, e a cada freada do motorista, só faltam enterrar o traseiro em minha cara. Desvio pra evitar este constrangimento, batendo o olho em um casal apaixonado que sentou ao meu lado, transformando o banco conjunto do fundo do ônibus num daqueles motéis intrigantes onde se transa com roupa e tudo, quero rir, mas seria constrangedor, então olho pro outro lado, nem sei o que mais me envergonha: a transa vestida a direita, ou o traseiro gordo a esquerda. Volto a olhar pra porta.

Outro ponto. Entra aquele rapaz que não terá o mesmo futuro que o meu: chinelo de dedo, bermudas rasgadas e camiseta regata, usa um boné de aba reta, que virou modinha em todas as classes no último ano, entra com uma caixinha tocando um funk em volume alto (nada contra, até curto um pouco, mas um funk naquela altura a essa hora da manhã não é lá muito agradável). No outro braço carrega várias caixinhas de chicletes, que vai oferecendo aos tios e tias, em troca de algum trocado.

Nesse momento alguém sempre pede a palavra, algumas vezes é algum pobre coitado, dizendo que não roubará nem nada, mas que queria uma ajuda, em qualquer quantia pra comprar sua cachaça, digo, pra poder voltar pra casa. Outras vezes é algum iluminado, que recebeu de Deus a Palavra e que se não prestássemos atenção seríamos condenado. Enfim, ambos os casos são bem engraçados.

Outro ponto. Entra aquele senhor que veste roupas sociais, chapéu e óculos escuros, fico imaginando como ele aguenta vestir-se assim no calor dessa cidade. Ele entra e vai disfarçadamente olhando as mocinhas que estão indo pro trabalho, pra faculdade e pra escola, encostando seu corpo em muitas delas - velhinho tarado. E eu com vontade de rir, apenas disfarço e olho pro lado, o casal continua conectado por seus lábios e língua, olho por cima deles, uma mocinha de cabelos cacheados, pele morena e óculos tenta ler um pesado livro entre os solavancos da rua esburacada, recebendo, vira e mexe, tapas trocados dos doces apaixonados. Ela é bonita do seu jeito, mas pelo visto deve ser tímida e inacessível, daquelas que vive pra estudar apenas.

Outro ponto. Entra aquela senhora que acabou de sair do mercado, carregando um número absurdo de sacolas. Demora a entrar, empurrando a massa de gente, o cobrador quase entra em desespero para fazê-la passar pela roleta, ela passa empurrando pra chegar aos assentos preferenciais, mas estão todos lotados. Olho para os adolescentes sentados um do lado do outro em um banco ao lado dela, trocando mensagens pelo celular, riem do que um envia ao outro - quanta futilidade! Minha vontade era levantar e pedir pra que eles cedessem lugar à senhora, antes que as sacolas terminassem de entortá-la, mas estava muito longe e seria tão constrangedor fazer isso. Outra senhora, pouca coisa mais jovem, se levanta. “Não havia necessidade”, eu penso, “se aqueles adolescentes idiotas fossem um pouco mais educado.” Mas eu também não fiz nada, apenas julgo e fico calado.

Na verdade nem daria tempo pra revolta: meu ponto está chegando, me levanto e enfrento a grandiosa epopeia de cruzar um ônibus lotado, trocando odores com diversas pessoas, empurro, peço licença, passo por baixo de braços, tropeço e peço desculpas, puxo a cordinha (que está quebrada e só se encontra na frente), o sinal apita e o ônibus vai parando, já estou quase na frente, mas um senhor obeso não me deixa passar, o motorista se irrita e vai saindo, eu grito que ainda vou descer e a massa de pessoas grita junto, condoída como se também sentisse minha frustração. Ele esbraveja e para de novo, abre a porta, eu murmuro um “obrigado”, mas nem olho pra ele, duvido que ele tenha olhado pra mim também.


Desço, então, do ônibus. Olho de volta enquanto ele vai saindo, no fundo a mocinha de óculos parou de ler seu livro e olha pela janela, por um momento pensei que ela olhava pra mim, então sorri, mas ela não respondeu. Não era pra mim que ela olhava, era pro nada. Foi então que percebi, mais uma vez, que na correria de um ônibus lotado, em uma cidade lotada, várias pessoas se esbarram, várias cenas se entrecruzam e encontros inusitados acontecem, porém a maioria das pessoas está apenas olhando para o seu próprio nada, inclusive eu...
--

Porto Velho está crescendo, eu sei. Talvez não o suficiente para tornar-se uma grande cidade, mas já vemos alguns sintomas dessa pós-modernidade "metropólica" que começa a infectar a nossa cidade. Basta sair de casa de carro, a pé, de bicicleta e de ônibus para sentir essa transformação.
A crônica de hoje se passa num ônibus, talvez você, corajoso leitor, já tenha passado por esse mesmo ônibus, talvez você seja até algum desses personagens que passam pela roleta, quem sabe você não é aquela moça sonhadora sentada no banco de trás, ou aquele impaciente que não sabe se se segura ou se olha no relógio pra confirmar que está atrasado.
Peguei e continuo pegando muito ônibus nessa pequena grande cidade de Porto Velho e já encontrei várias pessoas e algumas até me encontraram, mas nessa correria que inventamos, quem realmente encontramos nessa estrada?

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Primeiro Passo

Àqueles que não me conhecem pessoalmente e profundamente, pertenço à uma família muito grande dos dois lados, tanto por parte do meu pai, quanto por parte da minha mãe, o que significa que tenho uma multidão de primos de diversas faixas etárias.

Hoje quero falar dos mais novinhos deles pra introduzir minha poesia. Observei muitos deles crescerem e lembro como cada um deles começou a andar.

É engraçado e muito fofo ver uma criança dando os primeiros passos: ela observa, faz força pra levantar e cai com a bunda no chão, dá uma risada, bate palmas, tenta de novo e vai repetindo esse ciclo até que surge ele: o primeiro passo. O glorioso momento que, hoje em dia, é filmado pelos pais e comemorado entre as lágrimas de mães emocionadas.

Assim é a vida: primeiro vem o tombo, só depois o passo. Primeiro a gente chora, depois aprende a sorrir, e esse é o fluxo eterno da vida, com vocês, um dos meus textos preferidos.

Primeiro Passo

Primeiro o tombo
E só depois o primeiro passo.
Antes o tombo, só aí passo
E então alguém nos leva pelo braço.

Abraço,
Trabalho, salário, cansaço.
Primeiro o tombo,
Depois o primeiro passo.

Compasso,
Beijo, traição, amasso.
Se não há tombo,
Não há passo.

Nervos de aço,
Carinho, cuidado, não passo...
Tem o tombo,
Daí vem o passo.

Início,
Engatinho, chorando, disfarço.
Primeiro vem o tombo
E só então o primeiro passo.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A Odisseia de Alberto

Quando o despertador toca no dia após o domingo, Alberto vira quantas vezes pode na cama, pedindo a Deus para que seja a continuidade de algum sonho, que na verdade ainda está começando a noite... Mas o despertador é insistente, sabe que há compromissos a serem cumpridos, afinal: é segunda-feira.

- Odeio segunda-feira. – diz Alberto a si mesmo.

Então acorda, desliga o desesperado despertador, levanta-se da cama, acaricia a dama que deitava ao seu lado, não são casados, mas era quase, poderiam casar-se um dia, mas por que arriscar um relacionamento que dava tão certo? Dá um beijo nela, e a deixa terminar de acordar, sai do quarto e toma um banho rápido, apenas para afugentar o sono e a ressaca que sobrara do dia anterior, ou do sábado, ou da sexta. O final de semana costuma passar tão rápido que nem se sabe mais a origem de cada ressaca.

Apressadamente vai até a cozinha e põe a água pra ferver pra passar o café, poderia comprar uma cafeteira para agilizar esse processo, mas o café no coador era muito mais agradável. Tira, então, um saco de pão de forma da geladeira e o coloca no micro-ondas para esquentar um pouco, poderia comprar pão quentinho na padaria da esquina, mas o pão comprado junto do rancho já era o suficiente.

Pão esquentado, café passado, Júlia, a dama que anteriormente dormia, senta-se à mesa com um vestido florido que combinava com seus cabelos castanhos escuro e cacheados, o corpo magro, porém dotado de um sensualidade única, e um sorriso meigo que encantava qualquer olhar. Ele a beija enquanto serve o pão e a manteiga na mesa, podia dizer algo romântico, mas não havia a menor necessidade e nem havia tempo pra isso.

O celular toca: o chefe logo cedo avisa que vai chegar tarde, que Alberto precisa ir logo abrir o setor, afinal, o atraso de um órgão público nunca cai na cabeça do servidor, mas do chefe, o que cai na cabeça do servidor são os gritos e injúrias do povo que encontra o atraso. Alberto podia ter dito que iria em seu horário normal, mas não precisava arrumar problema com o chefe, pois, talvez cumprindo além do seu dever, conseguisse uma gratificação, assumisse algum novo cargo ou fosse indicado a alguma chefia.

Engole, então, o café, enquanto Júlia o pede pra ir com calma, que o mundo não vai acabar se ele chegar um pouco mais tarde. Ele ri da tolice da namorada: “Tempo é dinheiro”, justifica a si mesmo e parte para o carro estacionado na garagem, um carrinho velho, que já tem há muito tempo, podia comprar um carro novo, mas não caberia no seu orçamento.

Sai acelerado, chega ao trabalho. Enfia-se em processos, conta piadas, levanta argumentos, discutem e fazem silêncio, cada um precisa de um momento de concentração e descontração, podiam trabalhar mais na amizade e coleguismo, mas cada um depende de seu cargo e precisam da produtividade, serviço público é nome muitas vezes, o que vale são os interesses e todos têm aquele mesmo interesse: o cargo comissionado.

Alberto senta, levanta, carimba, assina e digita, lembrando dos tempos áureos da faculdade, nos quais bebia e fazia farra, enquanto sonhava em ser juiz, depois promotor, por fim auditor, delegado, advogado e aí passou no concurso pra agente administrativo, podia ter tentado outras coisas, mas no fundo sempre odiou o curso de Direito.

Faltando meia hora para o fim do expediente, todos param, afinal, a hora da saída é hora muito aguardada, podiam todos antecipar o trabalho do dia seguinte, mas aí onde ficaria a ansiedade de ir pra casa? Guardada na gaveta?

Uma e meia mostra, então, o relógio da parede, que unifica todos os relógios. Todos levantam e na corrida desenfreada tentam chegar na folha de ponto que passa de mesa e mesa, ponta a ponta, os mais espertos já haviam assinado a saída.

Alberto volta pra casa, almoça as sobras geladas do almoço, com preguiça de esquentar a comida que Júlia deixara na geladeira. Tira depois a camisa e os sapatos e liga o ventilador com o pé. A mesa da cozinha vira, então, escritório, tira os pratos, deixa na pia, podia lavá-los, mas Júlia faria isso quando voltasse da lojinha onde trabalhava, passa um pano na mesa pra tirar as sobras que escaparam do prato e coloca sua pilha de apostilas e livros: é hora de estudar para o próximo concurso, a chance de sua vida! Dessa vez daria certo!

Alberto podia tentar outras coisas, queria ser escritor, mas isso não dá dinheiro, não dá sucesso, era o que ouvia desde a adolescência: “Faça Direito, meu filho”, seus pais e professores lhe disseram.

Após a tarde de estudos, Júlia chega em casa, os dois discutem, a discussão diária que faz parte da vida dos dois, depois fazem as pazes, podiam ir ao cinema, afinal é dia de promoção, mas não há tempo, não há ânimo. Deixam a TV ligada... Assistir que é bom não conseguem: a mente está desligada; vão para o quarto.

Júlia procura por Alberto na cama, mas ele está muito cansado, podiam se amar um pouco mais, mas amanhã será outro dia cheio, deixa isso pra sexta a noite, deixa isso pro sábado e mais uma no domingo, quem sabe?

Então dormem, apagam no quarto com a central de ar ligada. Alberto sonha com uma vida mais agitada, Júlia sonha com um marido mais presente em casa, uma marido com quem ela nem sequer era casada.

O despertador, então toca, Alberto vira quantas vezes pode na cama, pedindo a Deus para que seja a continuidade de algum sonho, que na verdade ainda está começando a noite... Mas o despertador é insistente, sabe que há compromissos a serem cumpridos, afinal: é terça-feira.

- Odeio terça-feira. – diz Alberto a si mesmo..
--

Essa crônica dispensa meus comentários, quero apenas desejar uma ótima quarta-feira a todos os "Albertos" que a lerem.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Indecisão

Hoje deixo outro poema, agora sobre Indecisão... Quantas vezes somos levados a seguir por caminhos distintos, fazer escolhas, pular ou ficar parado, nosso coração acelera e o mundo gira, tudo parece ao mesmo tempo dar muito certo e muito errado. Esse texto de hoje fala desse sentimento, do arriscar-se e do exitar. Espero que gostem e continuem acompanhando minhas viagens textuais.

Indecisão

Dar um passo no passo escuro,
Um passeio sem volta e sem fim.
Dou passo, outra hora corro,
Outrora me despeço de mim.

Compasso que une dois passos,
Batuque da velha batera,
Que no peito lateja, eu acho,
Lutando o homem e a fera.

Disfarço: me olharam nos olhos,
Foi meu reflexo que o fez,
Me olhando, com medo e retalhos,
No espelho, julgando o que não fiz.

Abro espaço, a incerteza pede vez,
Uma vez que preciso arriscar.
Arrisco, com o medo que me fez,

Fazendo-me arriscar! É preciso... Recomeçar?
--

Apenas um breve pós-escrito: depois de publicada a crônica sobre nossa amiga Capitu, fervilharam várias garotas que se encontraram ou desejaram ser como ela. Agradeço à querida leitora e amiga Elisandra Freitas que chegou a uma bela conclusão deixada nos comentários: "Acredito que todas as meninas tem um pouco de 'Capitu' em si". Quem ainda não leu, confira, pois foi muito gostoso escrever e dar vida à essa Capitu que tantas pessoas gostaram.




segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Capitu no sábado a noite

Sábado à noite, pouca coisa ou quase nada pra fazer. Enquanto a maioria das pessoas fica comentando nas redes sociais, fingindo que terão uma noite empolgante, alguns, como Capitu, ousam sair do virtual para o real e aventuram-se na noite em busca de um sentido para a vida.

Capitu é uma jovem livre em seus pensamentos, aprisionada pelos pais, ou melhor, os pais acham que a aprisionam, mas, assim como a Capitu de Machado de Assis, a nossa Capitu não se deixa controlar, é um espírito livre como de cigana, e possui aqueles mesmos olhos de ressaca, porém agora com duplo significado: a ressaca do mar que arrasta os mais sãos homens para seus truques e seduções, e as ressacas das latas e long neck de cerveja e copos de vodka, whisk e outros tantos que nem sei listar.

Capitu é bela, mas às vezes se acha feia, às vezes se acha gorda, às vezes se acha linda, às vezes é viciada em academia, às vezes nem liga pro que se acha, só quer rir e rir, sem saber do que está rindo, às vezes ri até de si mesma. Ah, Capitu!

Capitu é tantas coisas que eu me confundo de tanto escrever sobre ela e, se eu não tomar cuidado, todos os parágrafos começarão com esse nome: Capitu... Enquanto esqueço sutilmente de escrever a história que queria contar sobre ela.

Meu problema é que Capitu é bonita como nenhuma outra, com seus olhos esverdeados, cabelos castanhos, o corpo recém-modelado pela academia. A que ontem era chamada de gorda, hoje passa pelas ruas ouvindo “gostosa”, e segue em frente, não liga, ela é livre, ou acha que é livre, nem sei, só sei que é linda a Capitu.

Mas chega de falar sobre ela e voltemos ao sábado à noite, quando Capitu parte pra mais uma festa, não preciso citar lugares, pois Capitu pertence ao mundo e não a lugar algum. Capitu dança, vive, se alegra e bebe. Beija aquele rapaz moreno e alto, de corpo esbelto, e bebe. Dança mais um pouco, esbanja a sensualidade, sorri enquanto lembra que a chamavam de gorda e, então, bebe.

- Capitu, já chega. – diz a voz em sua cabeça, Capitu diz que não, respondendo pra amiga que a fazia parar. Capitu é livre e está feliz, feliz!

Capitu samba, dança valsa, dança xote, dança forró e funk e bebe. Capitu domina a todos e todos pensam que a dominam, mas ela é livre, então sorri, ri, fala besteira e bebe, as amigas a seguram:

- Para com isso, Capitu.

E aí Capitu só vê a escuridão, some a memória, horas parecem minutos, minutos sufocam as horas e o dia amanhece. Abre então os olhos de ressaca a nossa Capitu: é domingo, não é mais sábado, está deitada em um sofá, ou será uma cama? A cabeça lateja e ela ainda ri à toa, é livre e feliz, mas até quando?

As amigas surgem e explicam que a protegeram, Capitu queria fazer milhares de besteiras, mas elas a impediram, grandes amigas: salvaram Capitu outra vez.

Capitu repete pra si a ladainha de que é feliz quando faz isso, mas se olha no espelho: maquiagem borrada, sorriso desfeito. É livre e é feliz, mas de que jeito? Lembra que a chamavam de gorda, lembra que não lembra se transou com quem seja essa noite, lembra que é livre, mas não sabe nem sequer o que é liberdade, lembra que é feliz, mas não sabe o que é felicidade. Então a forte Capitu solta uma outra Capitu escondida em seu peito e chora.

As amigas a abraçam, encostam suas cabeças sobre a dela, são três, inseparáveis, um grupo de aventuras incontáveis, são elas as duas outras partes de Capitu. O calor do abraço espanta a ressaca. As frustrações da noite anterior viram piadas. No final não era a festa, não era a liberdade, mas sim quem estava com ela. Capitu redescobre em cada gole a sua verdadeira felicidade nas amigas que a amparam, e faz isso com frequência. Sorri, vive e bebe, abraça e beija quem quer. A felicidade constante encontra mais tarde: no afago das amigas que não a deixam, em quem confia plenamente.

E então, será que Capitu é feliz? Será que deve ser julgada? Será que o que faz é errado?


Bem, fica você aí pensando, que Capitu vai continuar dançando, beijando e bebendo, sendo quem ela é, com um sorriso no rosto, mandando pra merda, falando o que pensa, abraçada com suas amigas, pois Capitu é linda, Capitu é livre... Ou não?
--

Qualquer semelhança é mera coincidência. Embora saiba que provavelmente isto será lido por várias "Capitus".
Enquanto a você, caro leitor, pode julgar, amar e apreciar ou condenar e odiar Capitu, o que importa é que ela continuará sendo Capitu e que só ela poderá dizer se é ou não feliz.
Eu julgo que ela é feliz a seu jeito. Então, boa sorte com seu julgamento....